domingo, novembro 07, 2004
O seguido e o seguidor
Li este texto há uns tempos numa revista do Expresso, acho fantástico. Espero que gostem. Aqui fica "O seguido e o seguidor" por Luís Fernando Veríssimo:
"Ideia para uma história. Um homem senta ao lado de outro homem num banco de parque. O outro começa a se levantar mas o primeiro o segura pelo braço e diz:
- Senta, senta. Vamos acabar com esta farsa. Eu sei que você está me seguindo.
O outro protesta:
- Eu? O senhor deve estar me confundindo com...
- Pare. Você pensou que eu não tinha notado? Todos estes anos?
- Não sei do que o senhor está falando.
- Quantos anos? Cinco? Seis?
O outro fica em silêncio. Depois diz:
- Mais.
- Dez?
- Mais.
- Quantos?
Novo silêncio. Finalmente:
- Não sei ao certo.
- Você não sabe há quantos anos vem me seguindo?
- Perdi a conta.
- E por que está me seguindo?
O silêncio desta vez é mais longo. Depois:
- Também não sei.
Os dois têm mais ou menos a mesma idade. Sessenta e poucos.
- Deixa eu ver se entendi - diz o seguido. - Você vem me seguindo há mais de 10 nos, mas não sabe porquê?
- Esqueci.
- Você foi ontratado para me seguir?
- Fui.
Pois então. Alguém está lhe pagando para me seguir. Quem é que lhe paga?
- Ninguém mais me paga. Nos últimos cinco, seis anos, tenho seguido o senhor por conta própria. Foi por isso que o senhor descobriu que estava sendo seguido. Eu não tenho mais dinheiro para comprar os disfarces que usava antes.
- Você é um detective?
- Era. Abandonei a agência de detective. Só o que eu faço agora é seguir o senhor o tempo todo.
- Porquê?
- Já disse que esqueci.
- Não. Por que você continuou a me seguir, por conta própria, mesmo depois de esquecer por que estava me seguindo?
- Não sei. Hábito. Era o que eu sabia fazer melhor. Ou...
- O quê?
- Talvez continue a segui-lo porque é a única maneira de descobrir por que eu estou lhe seguindo.
- Quem foi que o contratou?
- Nunca fiquei sabendo. O contrato foi feito com a agência.
- Minha mulher? Meu sócio?
- Não sei.
- Que tipo de coisas queriam saber a meu respeito?
- Tudo. Onde o senhor ia. Com quem se encontrava. Quando foi a Cancun...
- Você estava lá?
- Lembra do Manito? O do bigode e das...
- Era você?
- Bem mais moço. O senhor me deu muito trabalho quando começou a fazer jogging aqui no parque. Eu estava fora de forma, não conseguia acompanhá-lo. Ainda bem que teve aquela queda, e a fratura no joelho. Agora o senhor só caminha, e eu posso ficar aqui, sentado, vendo o senhor dar as suas voltas. Aliás, eu tive alguma coisa a ver com aquela queda. Lembra da velha com o cachorro numa correia?
- Era você?
- Era. Desculpe.
- E você fazia relatórios sobre a minha atividade?
- Diários. Ainda faço.
- Ainda faz?!
- Tenho cadernos cheios de relatórios. Toda a sua vida, em detalhes.
- Mas porquê?
- Porque a única coisa que eu faço na vida é seguir o senhor.
Porque preciso estudar minhas anotações e descobrir alguma coisa suspeita no seu comportamento. Para saber por que eu estou seguindo o senhor!
Não havia nada de suspeito ou reprovável no comportamento do seguido. Nenhuma razão para ele ser seguido. Ou havia? Ele era a pessoa indicada para acabar com as dúvidas do seguidor. Enganava a mulher? Enganava o sócio? O Fisco? Quem teria pedido para ele ser seguido o tempo todo? E por quê?
- Você pode me contar. Meus relatórios não servem para nada. Só eu leio.
O seguido se esforça para se lembrar de alguma coisa. O seguidor insiste.
- Ninguém vai ficar sabendo!
- Eu sei. Mas não consigo me lembrar de nada.
- Qualquer coisa. Não precisa ser um grande pecado. Traição da pátria, bestialismo, nada disso. Um deslize serve. Um casinho. Um vício. Qualquer coisa. Só para eu saber por que estou seguindo o senhor.
O outro sacode a cabeça. Bate com a palma das mãos nas coxas e começa a se levantar do banco.
- Desculpe, não posso ajudá-lo. Vou dar mais algumas voltas.
- Está bem, está bem - suspira o outro, desolado. - Eu estarei aqui...
- Talvez a gente possa tomar um café, depois.
- Tá bom. Mas não naquele bar que o senhor vai sempre. Já enjoei daquele."